"Os políticos perderam o poder"

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Entrevista. Filósofo e ministro entre 2002 e 2004, ligado à área da actual maioria que apoia o Presidente Nicolas Sarkozy, Luc Ferry veio a Lisboa apresentar a sua mais recente obra em português. E falou ainda sobre a crise e as suas raízes

Refere em Famílias Amo-Vos o aparecimento do sistema de crédito que conduziu ao actual modelo de hiperconsumo. Esta crise é a crise desse modelo?

É preciso não esquecer que o crédito abriu o consumo aos mais desfavorecidos e esteve na base do crescimento dos últimos 20 ou 30 anos. Agora, esta crise é a crise da bolha criada pela economia-casino dos financeiros e banqueiros de Wall Street.

O que falhou então?

A partir do momento em que domina a lógica da globalização, o problema é que o mundo avança sem que sejamos parte activa daquilo que funciona como o seu motor. Marx tem uma frase - os homens fazem a história, mas não sabem a história que fazem - que é mais actual do que nunca. O mundo move-se e ninguém sabe nem como, nem para onde, nem porquê. Os altermundialistas pensam que por detrás dos mercados financeiros há bonecreiros que controlam os fios... isso seria uma boa notícia, porque na verdade não há ninguém. Por detrás dos mercados financeiros não está ninguém, apenas uma lógica anónima e cega. Estamos numa economia que parece uma bicicleta obrigada a avançar, mas não se sabe para onde vai - é isto a crise económica. Escapa-nos o sentido do mundo. E escapa ao Presidente francês ou ao primeiro-ministro português, que não podem por si resolver a crise. Podem comprar um banco, mas pouco mais do que isso.

A crise é inelutável?

Não forçosamente. Creio que acabará por ter uma saída, uma solução. Vai haver vítimas, mas acabará por se encontrar uma solução. A mundialização coloca um problema de que começamos a aperceber--nos: o de recuperar o controlo sobre o rumo do mundo, que nos escapa. A grande questão da construção europeia é a de saber se somos ou não capazes de criar instituições de regulação, que não sejam apenas ao nível nacional. O que é claro é que os políticos estão impotentes, perderam o poder real.

Quais as causas desse esvaziamento?

A mundialização. Hoje, o crescimento, a inflação e todas as transformações do mundo escapam ao controlo dos políticos. Vivemos num mundo que muda a grande velocidade sem que os políticos tenham voz activa no assunto.

A classe política é inútil?

Neste momento, sim, maioritariamente inútil. Mas isto não pode durar assim. A questão é a de saber em que condições pode voltar a ser útil.

Esse processo passa também pela reinvenção do Estado?

Sem dúvida, mas não o Estado-Nação. Este nada pode fazer. Nenhum Estado europeu por si pode alguma coisa contra a crise, só em conjunto se poderia fazer algo razoável, mas enquanto estados nacionais, não. A verdade é que a política nacional deixou de ter real poder e a questão é a de saber como o recuperar.

E quanto à União Europeia?

Infelizmente falhou o tratado constitucional, que era excelente por uma razão que as pessoas não entenderam - especialmente em França - e que é a seguinte: permitia ultrapassar o problema da unanimidade a 27, que é uma forma de não tomar decisões.

A solução para o impasse é uma UE a duas velocidades?

Não é preciso. Basta definir um conjunto de questões a serem resolvidas por maioria qualificada, de 20 a 40, por exemplo. Por isso, a Europa está completamente bloqueada, sendo apenas uma realidade económica e comercial, o que não é mau, mas não é muito menos do que uma Europa política. O fracasso do tratado é gravíssimo, porque nos deixa na pior Europa possível: não é uma Europa das nações nem uma Europa federal. Não temos uma Europa política nem uma Europa dos Estados-Nações. A situação é pior do que um impasse, estamos no pior sistema possível: é como se estivéssemos parados no meio de um rio. E, mais grave, o direito europeu vai continuar a proliferar de forma antidemocrática através da Comissão.

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